segunda-feira, 9 de abril de 2018

A HISTÓRIA JULGARÁ LULA E OS JUÍZES


Anoitecer no país


"Nunca vesti bombacha. Mas jamais deixei de ser um gaúcho da campanha. Não duvido de que volte para a querência quando chegar a hora de fechar o ciclo. Andei pelo mundo campereando ilusões. Sempre me senti um potro costeando a cerca para voltar aos campos da minha infância. Quando chove fininho eu penso naqueles homens e mulheres que tomavam mate ao amanhecer e ao cair da tarde comentando fatos que mal conheciam, notícias ouvidas nas ondas curtas, novidades trazidas por algum mascate de cavalo magro e olhos turvos. Penso na minha avó preparando “farinha de cadela” e no meu avô debulhando “milho catete”.
– Pois mataram o Fidélis – ouvi um dia meu avô dizer.
Não conheci o Fidélis. Nunca soube o motivo da sua morte. Lembro apenas de um longo silêncio, a cuia passando de mão em mão, a noite caindo com um pano negro sobre o verde das coxilhas, o cerro desaparecendo aos poucos por trás do mato acabrunhado e melancólico.
– Se lo mataram – meu avô gostava de um portunhol bem seu.
– Que Deus o tenha – minha avó tinha pressa em mudar de assunto.
– Que vamos ter amanhã?
– Refogado de couve e mogango com leite.
Eu detestava couve e odiava mogango com leite. Ficavam uns fiapos entre os dentes. Na cama, pensaria no Fidélis, que não conhecera, e no almoço que já me revoltava o estômago. Queria fugir.
– Dois tiros.
Era o meu avô quem falava. Tinha esse costume. Remoía os assuntos ao longo de horas esperando a janta. Não dispensava os seus rituais: uma bacia com arnica para cuidar dos pés, um violão que dedilhava sem tirar música, um tempo tentando vencer a estática num rádio ABC, enquanto eu lhe coçava as costas, causos que iam e vinham.
– Que Deus o tenha – repetia a minha avó.
Sempre depois da janta era o meu avô quem lavava a cuia do chimarrão, que só chamava de mate. Saía no escuro para jogar a erva fora e enxaguar o material com água tirada da talha com um copo de lata de azeite ou de doce de pêssego. Eu o seguia morrendo de medo. Queria sentir a espessura da noite, o veludo do escuro, a aragem do tempo. Queria sentir aquele medo que me fazia estremecer e correr para dentro. A noite para mim era uma aranha que avançava com patas negras. Não, eu não era um poeta precoce de magras e lúgubres metáforas. Todo dia eu via uma aranha assim subir lenta pelas paredes do galpão.
– Uma junta militar vai assumir – disse meu avô.
A minha avó suspirou. Nunca falava de política. Parecia alheia ao mundo dos grandes. Vivia para os seus. Quando se sentia animada com a vida, criava perus. Boa parte da ninhada morria cedo. Meu avô dizia que era perda de tempo. Às vezes, quando saímos para a lavagem da cuia, via-se em algum lugar um ponto luminoso e um rumor descontínuo.
– Vem gente – dizia meu avô, espichando as orelhas como um cão.
Eu esperava. Nunca vinha. O ponto luminoso e a luz pareciam se aproximar por alguns minutos. Depois, afastavam-se ou sumiam. Sonhei com Fidélis comendo mogango com leite e tomando dois tiros à mesa. Fiz xixi na cama, que já era, para minha humilhação, forrada com plástico. Meu avô contava histórias e sonhava com música de bandoneón. Depois da primeira vez que falava de alguma coisa, mudava o jeito de retomar:
– Quando mataram o Fidélis…
Na minha frente, sonegava os detalhes. Quando não se continha, minha avó tratava de freá-lo com uma fórmula que o silenciava:
– Não fica assombrando o guri.
Eu vivia assombrado. Olhava para a aranha e antecipava a noite. Pensava na noite e via o Fidélis, que não tinha rosto, mas que podia assumir o rosto de algum mascate sombrio, salvo o do Seu Jesus, que era amigo da casa e me trazia, para desespero da minha avó, caramelos:
– Não vai quebrar os dentes, guri!
Minha avó só ficava mais assustada quando comíamos peixe e ou quando saíamos para caçar. Temia que eu me engasgasse ou me metesse na frente da espingarda. Meu avô só temia o barulho que eu fazia espantando as marrecas pousadas na aguada que lembrava um pergaminho.
– Se lo mataram. Anda por aí, o Fidélis.
Eu me apavorava. Já via o morto saindo dos matos. Certa vez, eu me atrevi a perguntar com um fio de voz enquanto a noite caía:
– Por que mataram o Fidélis, vô?
– Quem pode saber? Tinha a alma osca.
– Quem foi?
– Nunca descobriram. Um maula vindo da Banda Oriental, talvez.
Calou-se. Tomei rumo. Ganhei o mundo. Perdi a querência. Na França, contaria para os amigos os “causos” do meu avô. Antes disso, porém, recebi um telefonema, na época em que isso era má notícia ou cumprimentos pelo aniversário. A tristeza cabia numa única frase:
– Teu avô se matou.
Estava cansado de esperar a morte. Ficaram as suas histórias. Vez ou outra, quando chove fino e a noite cai, eu o ouço dizer:
– Se lo mataram, o Fidélis.
A história julgará Lula e os seus juízes."
PENSEM  NISSO   ENQUANTO  EU  VOS DIGO ATÉ  AMANHÃ.
FacebookTwitterGoogle+

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O TEMPO

O TEMPO MOISÉS MENDES Para lembrar ou para esquecer no fim do ano: uma lista de fatos que parecem ter ocorrido anteontem. 11 de dezembro d...