sábado, 18 de fevereiro de 2017

RADAUAN NASSAR ESCREVE SEU MELHOR TEXTO


Li, como todo mundo que se interessa por literatura, os dois livros de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica e um Copo de Cólera. Não me apaixonei. Considero Nassar um dos autores mais superestimados da história da literatura brasileira.
Não é ruim. Mas não me parece tudo o que dizem.
Na pobreza atual da literatura brasileira, contudo, o velho Nassar, aposentado há 30 anos, brilha como um holofote. Ganhou o prêmio Camões. Ele mesmo confessou não entender a honraria. Falou por modéstia. Mas sua modéstia não deixa de dar uma pista sobre os misteriosos caminhos das escolhas dos premiados em todos os escalações.
Quem já esqueceu o Nobel para Bob Dylan?
Se os livros de Nassar me parecem difíceis de ler até o fim, embora curtos, o seu discurso na hora receber o prêmio foi uma obra-prima. Raduan desmontou o governo Temer da primeira à última página. Foi na pleura.
Não fez ficção. Disse toda a verdade.
Detonou o truculento Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer para o STF: “Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes. Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.”
Moraes é apenas um capítulo do aparelhamento das instituições pelo governo Temer.
Raduan Nassar deu nome aos bois com a crueza dos seus personagens: “Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro”.
Apontou o dedo para os aliados da ilegitimidade: “Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal. Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas”.
O enferrujado Nassar fez de uma enfadonha cerimônia literária um acontecimento político.
Mostrou a velha covardia do STF, que se vergou ao golpe de 1964 e legitimou o de 2016: “É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado. O golpe estava consumado! Não há como ficar calado”.
Merecia o Camões. Nem que fosse por esse discurso.
O ministro da Cultura, o ex-comunista Roberto Freire, há muito convertido em direitista da linha auxiliar do DEM e do PSDB, reagiu. Tomou vaia. Pagou mico. Defendeu o seu governo neoliberal sem votos, salvo os votos da mídia.
Se Raduan Nassar fosse Jean-Paul Sartre teria recusado o prêmio.
Mas tinha uma boa desculpa para não fazer isso: a honraria lhe foi atribuída antes do impeachment.
Ainda assim, para aprofundar seu gesto político, poderia ter devolvido o cheque.
Poderia ter atualizado Machado de Assis e imortalizado uma nova frase: “Ao vencedor, as pipocas”.

Pense nisso enquanto eu vos digo até amanhã.

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