quarta-feira, 26 de outubro de 2016

SÓ O ROSTO É INDECENTE . DO PESCOÇO PARA BAIXO PODIA-SE ANDAR NÚ

"Olhar através do buraco da fechadura parece um tanto excitante. Há em nós um espectador “voyeur”, passeando pelas inúmeras janelas indiscretas da internet e das relações cotidianas. Vídeos vazados, nudes, batida de carro, briga de vizinho — dramaturgia sedutora e instigante estimulando a mirada. Para alguns, não há diversão maior do que a novela da vida alheia. É inegável: observar o outro secretamente é tão provocante quanto acompanhar a dança que o olhar da câmera do Hitchcock executa.
Por outro lado, para ser espectador é preciso que alguém esteja disposto a se exibir. Num mundo onde a exposição é generalizada, há mais exibicionistas narcisos do que olhos para dar conta da demanda. Com a perda da privacidade, parece irônico pensar que seria mais obsceno mostrar o rosto do que o sexo, do que o corpo. Nelson Rodrigues corrobora essa reflexão: “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”. Esconder o rosto é a única forma que nos resta de manter a individualidade.
O certo é que pessoas precisam de pessoas. Construímos significados e sentidos que nos atravessam por inúmeros espelhamentos. Em alguma medida, regulamos nossas câmeras internas a partir do olhar que está do lado de fora. Aprender com alguém é magnífico, mas é terrível preferir viver o prazer do outro a encontrar o próprio. É que o “voyeur” fascinado, desmedido, torna-se cego. Interessa-se obsessivamente pelo prazer da vida alheia, enquanto sente um desinteresse profundo em relação à própria vida.
O olhar está fora. Olhamos porque nos falta, porque ver nos ajuda a acender o olhar por dentro. Olhamos para nos inspirarmos. Para comparar, para melhorar. Olhamos porque nos excita contemplar o que o outro possui — pernas, bunda, inteligência, humor, idiotice, beleza, cultura, conta bancária —, cada um exibe o que tem. Cada lente captura o que se encaixa no seu prazer. Os masoquistas insistem em olhar desgraças só pelo prazer de se sentirem mal. Tem espectador para tudo! Nesse jogo de cena, é possível ver apenas por um ponto, enquanto somos observados por vários. Sorria, você está sendo filmado! Aliás, qual é o seu melhor lado?
É natural do humano o desejo de ver, embora seja mais intenso o desejo de ser visto. Não há nada mais libidinoso do que ser atravessada por um olhar. Como num romance, Lily Braun, a personagem criada para compor o “Grande Circo Místico”, foi capturada pelas lentes objetivas de um “voyeur”. Ela descreve: “Os seus olhos me chuparam feito um zoom. Ele me comia, com aqueles olhos de comer fotografia”.
Confessa! Para esse olhar pornograficamente poético, quem não diria “cheese”?"

ruth borges

PENSEM NISSO  ENQUANTO  EU  VOS DIGO  ATÉ AMANHÃ.

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