quarta-feira, 27 de abril de 2016

A EROSÃO DO ESTADO DE DIREITO


"Durante o último final de semana, o Rio Grande do Sul ganhou manchetes nacionais, diante de um confronto ocorrido entre criminosos e policiais militares, em uma grande avenida da capital gaúcha. Como o saldo foi de morte dos quatro criminosos e nenhuma perda por parte da polícia, a sociedade gaúcha comemorou e parabenizou os policiais envolvidos. O Comando da Brigada Militar foi mais longe, e com grande senso de oportunidade convocou a população para na próxima quarta-feira condecorar os policiais por bravura, na presença do Governador.
No dia seguinte, no entanto, um vídeo gravado por câmeras de vigilância e divulgado pela imprensa e nas redes sociais ofuscou o brilhantismo da atuação da polícia. Pelas imagens, constata-se que um dos criminosos sai do carro em que estava, na função de motorista, desarmado, se joga no chão, e ergue os braços em sinal de rendição. Um dos policiais se aproxima, e desfere grande quantidade de tiros. Então surge o questionamento: Seria o caso de concordar e premiar esta conduta? Seria ela fruto do calor da hora, não sendo exigível uma outra conduta?
Em outra cena gravada, aparecem os policiais, após a confirmação da morte dos ocupantes do carro, descaracterizando o local da ocorrência e dificultando o trabalho da perícia, permitindo que os fatos passem a ser aqueles baseados no testemunho dos policiais, e não em apuração isenta, como um caso como este exigiria. E os policiais serão condecorados antes de qualquer investigação.
O caso em si, e toda a repercussão que teve nas redes sociais, com uma grande mobilização de policiais militares e agentes de polícia para rebater qualquer questionamento, e com a solidariedade imediata inclusive de outras corporações, como a Polícia Civil do RS e a Polícia Rodoviária Federal, denota o processo acelerado de erosão do Estado de Direito que estamos vivendo.
Em qualquer país onde as leis estão em vigência, casos como este, são investigados e esclarecidos, para só então ensejar qualquer tipo de premiação ou repúdio. No Brasil, ao que parece, diante do aumento da insegurança pública, fruto em grande medida do corte de recursos públicos para o setor, com desvalorização dos policiais, falta de equipamento e de efetivo, corte de horas extras e superlotação carcerária, a aposta é na adesão da opinião pública ao “bandido bom é bandido morto”, flexibilizando os já frouxos controles sobre a atividade policial, e inviabilizando qualquer medida que indique a necessidade de submeter a ação policial aos mais elementares padrões de procedimento.
Em plena década de 90 do século passado, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chamava a atenção para o surgimento do “fascismo societal”, ou seja, a adesão cada vez mais ampla a comportamentos e opiniões de negação do outro, legitimando um duplo padrão de atuação estatal, brutal e violenta em áreas de periferia e contra suspeitos ou criminosos com perfil de baixa renda, e respeitoso e cordato contra os chamados “cidadãos de bem”, mesmo que autores de delitos. Seria uma atualização de uma situação bastante conhecida no Brasil, do tratamento desigual para os subcidadãos, demonizados e reprimidos a margem da lei e do direito, e os sobrecidadãos, que não são alcançados pelas instituições de controle.
Desde 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, passamos a trilhar um novo caminho de afirmação democrática. Mesmo sujeitos às críticas de setores conservadores, dentro e fora das polícias, que passaram a se considerar de “mãos amarradas” para atuar contra o crime, e de setores “críticos”, que consideravam a aposta no Estado democrático de direito uma impossibilidade no contexto brasileiro, conseguimos estabelecer pontes de diálogo e construir novos consensos sobre a ação do Estado no controle do crime, com respeito à lei e a padrões profissionais de enfrentamento de conflitos. Muito ainda ficou por ser feito, como a reforma das estruturas policiais, com a adoção do ciclo completo de policiamento e da carreira única de polícia, e a consolidação de padrões profissionais de atuação por meio da formação e da valorização dos bons profissionais.
Diante deste e de outros eventos, no entanto, precisamos reconhecer nosso fracasso. Fracassamos como pesquisadores, por não conseguirmos construir um sistema de segurança pública capaz de garantir o direito à segurança para a ampla maioria dos brasileiros. Falhamos como cidadãos, ao não exigirmos mecanismos de transparência e controle público sobre as instituições de segurança. Falhamos como sociedade, ao estimular o vale tudo contra o crime e a desvalorização da vida e da justiça. Precisamos reconhecer nosso fracasso, para poder seguir em frente e resgatar o que ainda resta de justiça e democracia. Talvez ainda haja tempo. Talvez já seja tarde demais."
.oOo.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Sociólogo, professor da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fernanda Bestetti de Vasconcellos é Socióloga, professora da UFPEL e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O Sul21 reserva este espaço para seus leitores.

Pensem  nisso  enquanto  eu  vos digo até amanhã.

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