sexta-feira, 16 de março de 2018

MARIELLE , HAWKING E GIVENCHY


   "Ontem eu escrevi um texto, publicado hoje no Correio do Povo, sobre duas mortes naturais comentadas em grande parte do mundo: morreram o físico Stephen Hawking e o costureiro Hubert Givenchy, o cientista pop e o “costureiro das ruas”. Não entendi qualquer um dos dois. Hawking era genial demais para que eu pudesse compreendê-lo. Givenchy, simplesmente sofisticado ou sofisticado com aparente simplicidade. Fora do meu alcance. Hawking falou de supercordas e de buracos negros. Espetacular. Pura poesia para olhos e ouvidos como os meus, acostumados ao imaginário grosseiro do cotidiano. Quanto mais eu leio, menos chego perto. Dá até vertigens.
A vida de Stephen Hawking, diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica desde os 21 anos de idade, só pode ser descrita como impressionante. Preso numa cadeira de rodas eletrônica, perdendo movimentos a cada momento, nunca deixou de se aventurar. Casou-se duas vezes, teve filhos e explorou os confins do universo com a sua inteligência incomensurável. A partir de certa época, falava através de uma ferramenta, o programa Equalizer, acionada primeiro com os dedos e depois com as bochechas. Por fim, com outro aparelho, produzia sons a partir do movimento dos olhos. Só isso já é demais para mim.
Givenchy percorreu outras passarelas. Defendia a elegância discreta. É dele esta recomendação aparentemente simples e de incontestável bom senso: “Tudo de que uma mulher precisa é um trench coat, dois tailleurs, um par de calças e um suéter de cashmere”. Parece pouco? Trench coat é um casaco. Só de ler esse nome é como se um buraco negro surgisse repentinamente engolindo tudo pela frente. Hawking virou moda. Givenchy era a moda. As explanações científicas de Hawking tinham a pureza e a simplicidade das roupas de Givenchy.
O filósofo francês Jean Baudrillard, mestre das fórmulas sofisticadas e da genialidade polida, considerava Hawking um artista da física e via em Givenchy um cientista da alta costura. Um explicava as curvas do tempo e do espaço. O outro moldava formas sinuosas. Ambos buscavam comunicar o que sentiam, viam e antecipavam. Pode-se comparar um costureiro com um físico sem cometer crime de incomparabilidade? O próprio Hawking serve de avalista para as nossas ousadias: “Quando alguém reclamar que você cometeu um erro, diga-lhe que pode ser algo bom. Porque sem a imperfeição nem você e nem eu existiríamos”. Bom.
Como era o futuro para Hawking e Givenchy? O físico polemizava falando sobre a possibilidade do fim da era da humanidade. Estamos inventando o nosso fim graças à criatividade natural criadora de inteligência artificial? O costureiro lamentava o fim da era da elegância sem espetacularização vulgar. Talvez Hawking tenha sido menos elitista que Givenchy. Outra grande frase de Hawking foi esta: “Somos apenas uma estirpe avançada de macacos em um planeta menor de uma estrela muito comum. Mas podemos entender o universo. Isto nos torna muito especiais”. Uma espécie que se veste para se descobrir.
O paradoxo da humanidade está no fato de que não somos o centro do universo, mas somos centrais para chegar a essa descoberta.
Hoje, com o assassinato da vereadora Marielle Franco, (PSOL-RJ), meu texto ficou anacrônico. Eu queria falar da morte do sábio e da morte do estilista em tom leve e sedoso, mas a realidade lamentável do Brasil me arrancou das doces homenagens. Mulher, negra e oriunda de uma favela, Marielle morreu por ser corajosa. Vinha denunciando a violência policial numa das áreas mais conturbadas do Rio de Janeiro. Foi executada. O que dizer quando a polícia é o bandido? O que fazer? O que sentir?
No twitter, Marielle havia dito: “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!” Não durou muito para ver alguma medida sendo tomada.
Num país sem sabedoria e cujo estilo ainda é o dos esquadrões da morte e dos capitães do mato, uma socióloga negra, quinta vereadora mais votada da sua cidade, vira alvo da bandidagem corporativa.
A verdade virá à tona?
Talvez. Quem dá as cartas é que dirá.
Não há tempo no Brasil para falar de mortes naturais de personalidades internacionais consagradas. Ainda estamos no mais assustadores dos presentes, aquele que repete o passado insuportável e não permite imaginar qualquer futuro melhor. O assassinato de Marielle faz entoar o refrão:
– Brasil, mostra tua cara.
Até quando?
Nem a genialidade de Stephen Hawking conseguiria prever.
Num país em que a violência policial é defendida até por presidenciável como solução, todo horror é possível. Neste momento, somos todos Marielle. Mas as mulheres negras são muito mais."

Pensem   nisso   enquanto  eu  vos digo  até  amanhã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O TEMPO

O TEMPO MOISÉS MENDES Para lembrar ou para esquecer no fim do ano: uma lista de fatos que parecem ter ocorrido anteontem. 11 de dezembro d...