sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

GOSTO PELA VIDA

Depois do sertão, o litoral, as águas azuis ou verdes de Maragogi. Não tenho como medir a qualidade da poesia com um metro inquestionável. De resto, tenho passado a vida a espreitar estrelas. O peruano Cesar Vallejo me parece um dos melhores de todos os tempos. Um dos melhores que li quando me perdia em busca de uma referência onde me agarrar até que passasse o sacolejar das ondas no barco do Capitão. Foi nessa época que me escorei em quatro dos seus versos ambíguos.

Hoje gosto muito menos da vida
Mas, como dizia, sempre gosto de viver
Quase toquei a parte do meu todo e me contive
Com um tiro na língua por trás da minha fala

Calma! Sem interpretações rasteiras. Não era de morte realmente que o poeta falava. Nem eu. Mas simplesmente de expressão. Quem não quer tocar no seu todo e permanecer parte de alguma coisa maior e indestrutível? Quem não quer se acender com a lua e se apagar com o sol a cada tarde como uma brasa mergulhando no mar? Quem não sonha em viver para sempre os mesmos anos, os mesmos dias, as mesmas luas, os mesmos subúrbios, as mesmas palavras de amor?
Quem já não se viu, ao nascer do dia, debruçado na varanda observando o nascimento das árvores, dos morros, das casas, dos animais, das igrejas e de si?
Hoje gosto menos da vida, pois ela me exibiu suas misérias sem trégua ao longo destes anos de mutação e permanência da desigualdade, mas gosto sempre de viver, pois ainda ontem vi uma criança abraçar um cão felpudo de olhos amendoados e rir para mim como se me dissesse: que lindo! Quem nunca saiu a caminhar imaginando uma via láctea na volta da esquina, por trás das sombras? Quem nunca se emocionou diante da mudez terna de uma paisagem sem razão de ser? Quem nunca queimou como uma vela na manhã de domingo esperando o melhor acontecer? E aconteceu! Quem nunca contou estrelas para viajar no firmamento?
Sei que toda poesia é inútil. Tão inútil quanto a passagem do tempo, esse gato branco que nos contempla imóvel de cima da cristaleira, escondendo a fotografia amarelada de meu bisavô. A inutilidade poética, no entanto, me devora cada vez mais como se apenas nela eu achasse o sentido da impermanência. Outro dia, estive numa rua onde jamais estivera. Eram casas de madeira, todas coloridas, pacatas, belas, à margem da grande avenida onde rugiam os carros.
De uma delas, um gato ficou me olhando. Sei, não era a mim que olhava. Era o mundo. Essa parte do mundo onde ele e eu nos víamos por inteiro.
Toda vida é um poema. Em prosa. Uma parte de nós escapa a esse encontro com o todo escondido atrás de cada palavra. Quem nunca se viu sem voz quando parecia pronto para expressar o seu deslumbramento diante do sublime da existência, essa fagulha de sol que ilumina medalhas? Hoje, gosto menos da vida, porém gosto mais de viver, pois sei que atrás do arco-íris há um gato de olhos negros velando por nós. Por isso, perco esse tempo, que não é meu, colhendo palavras de poetas.
Então adormeço e sonho com estrelas caindo da minha boca. Elas caem no mar de Maragogi que contemplo nesta madrugada de cinzas."

Pensem   nisso  enquanto  eu  vos  digo  até  amanhã.

texto :  juremir  machado da silva  -  correio  do  povo  -  porto  alegre

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