Meninos, acreditem, eu vi nascer o medo
"Eu ainda não tinha seis anos.
Morava num apartamento térreo, na Travessa Miracema, no Méier, onde havia um quartinho, externo, onde eu tomava café da manhã com meu pai: para mim, com leite, para ele jamais, porque detestava – como eu, hoje, só de olhar e sentir o cheiro do leite fervido, porque se o fervia, então.
O pão era dividido: ele comia as cascas, eu o miolo: Cascadura e Madureira, brincadeira com dois bairros do subúrbio carioca de onde vinha a família.
Sobre a mesa, o rádio Semp, all transistor, com o tamanho “portátil” quase de uma caixa de bombons e sua capa de couro, porque era bem precioso.
Dele, saem os tons inesquecíveis da velha Rádio Jornal do Brasil e diz-se algo que eu, óbvio, não entendi. Mas que o deixou lívido, silente, logo ele que sempre falou e fala pelos cotovelos.
Saiu repentinamente, largando porta do apartamento e o pequeno portão do prédio, que tinha um jardim à frente, abertos.
O guri, claro, foi atrás, pela porta, pelo jardim, pelo portão e alguns metros pela calçada direita da pequena rua, que desembocava diante da antiga Mesbla da Dias da Cruz, onde passavam os bondes, a principal “do lado de cá” do bairro dividido pela linha férrea, onde o lado esquerdo era o “de cá” e o direito “o de lá”.
Havia tanques, não bondes.
E daí guardo a memória do único dia em que meu pai foi fisicamente bruto comigo. Depois dos livros sumindo, papéis queimados ou picados no vaso sanitário, um “tio” que apareceu por lá e depois sumiu.
Eu só voltaria a encontrar a ditadura já molecote, quando ouvi algo sobre o filho de uma professora, amiga de minha mãe, “ter sumido”.
Sumia-se.
Sumia-se do Brasil – Chico, Caetano, Gil – ou sumia-se para nunca mais.
De política não se falava, salvo nas citações muito discretas e algo debochadas à “Redentora”, apelido da “Revolução” que viera nos devolver a moralidade e a democracia.
Os “coxinhas” de então eram os lacerdistas. Tão chatos que até a um mosquito batizaram de “lacerdinha”, porque zumbia o tempo todo e irritantemente.
E ainda tinha algo melhor que hoje, ao menos. Naqueles tempos, além dos playboys da Zona Sul, lacerdistas eram as velhas chatas – as “mal-amadas” – que implicavam com a garotada e “dedo-duro” era a condição mais abjeta que alguém poderia ter. “(al)Caguete merece cacete”.
Não vou falar da política, que descobri nos anos 70 e que era tão fácil descobrir que, em 1974, o jingle que passava na Lei Falcão – a propaganda eleitoral só de retratos e musiquinhas – do partido consentido de “oposição” dizia: é o M, é o D, é o B, nem precisa explicar porque.
Quero apenas falar do medo, Quero apenas falar da escuridão opressiva, daquela que o Chico cantou que “na gente deu o hábito de caminhar pelas trevas, de murmurar entre as pregas, de tirar leite das pedras”.
Eu quero sair de novo por aquela porta, por aquele portão, e descer para as ruas onde agora não há tanques, mas por onde rolam as esteiras de uma mídia que esteve atrás deles quando eu não tinha nem seis anos. E que agora ocupa a vanguarda do golpe.
Como o flautista de Hamelin, ela diz que nos vai livrar dos ratos e, depois, sua melodia hipnótica serve para levar as crianças a uma caverna escura.
Eu estive lá. Não quero voltar. Não quero meus filhos lá.
À rua, à luz.
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