Em abril, ou seja,bem antes do aniversário do Lula, meio ano antes,Camilo, filho de meu amigo Paulo Vannuchi,me pediu uma carta dirigida ao Lula, para um site que ele estava fazendo.
O conteúdo do site,aliás muito interessante,era exatamente esse: cartas para o Lula.
Hoje,27 de Outubro, aniversário do Lula,repito aqui a carta.
Não precisei atualizar : cada palavra minha continua valendo, só que com muito mais ímpeto.
Rio de Janeiro, 20 de abril de 2019
Lula, meu bom amigo:
Estou há tempos para escrever. Um ano, para ser preciso. Mas só agora consigo. Você vai perguntar como é que alguém que vive do que escreve há exatos 54 nos demora mais de um para escrever uma carta.
Respondo: às vezes, a mão seca.
Cada vez que comecei a escrever para você o que acabava saindo era pura indignação. E eu não queria nem quero mandar para você uma carta irada, por mais justa que seja - e é -essa minha indignação.
Hoje, sábado de aleluia, vamos ver se consigo.
Indignado sempre, pelo que fazem com você e com o País. Porém, serrado.
Não preciso contar o que acontece aqui - me refiro a aqui fora- porque você contínua absolutamente informado de tudo.
Mas conto que nunca,Lula,em nenhum momento, achei que fosse chegar a esta altura da minha vida vendo o que fizeram e fazem com esse pobre País.
Eu vivi de perto, Lula, golpes tremendos. Vi o Uruguai ruir em Junho de 1973, vi o Chile desmoronar em Setembro de 1973,lembro de Salvador Allende, vi o terror se instalar na Argentina em março de 1976.
Tive amigos mortos, tive e tenho amigos que sobreviveram a torturas selvagens, a exilios dolorosos,a distâncias e tempos irrecuperáveis.
Eu mesmo passei longos anos sem poder vir ao Brasil. Vi meu filho aprender a ficar em pé e a andar e a falar e a escrever longe do país dele.
Vivi e vi um monte de coisas mundo afora, Lula. E achei que isso tudo era passado,era memória.
E agora vejo e vivo o resultado de um golpe diferente. Um golpe sofisticado,perfeito : primeiro tiram uma presidenta eleita,depois prendem você, impedem que dispute uma eleição assegurada,e pronto.
Não tanques nas ruas, não há trabalhadores e estudantes sendo torturados e fuzilados (exceto,claro,quando são pobres e em sua maioria negros ), os grandes meios de comunicação funcionam sem policiais censores nas redações (nem precisa: os patrões e os chefes nomeados a dedo bastam), e tudo parece normal.
Parece , Lula.
Mas você, melhor que qualquer um, e eu sabemos que de normal Não há nada neste país destroçado, à deriva,rumo a um naufrágio tenebroso.
Será este nosso país um pais sem memória?
Espero que não, meu bom amigo. Espero que não, e que desperte rápido desse pesadelo.
Além da dor e da indignação por tudo que acontece,Lula, ando cheio de perguntas. Por exemplo: como é que puderam votar nessa aberração que todo Santo dia deposita o traseiro na poltrona presidencial?
Como Dr que essa aberração nomeou esse ministério todo -do qual,aliás, não escapa ninguém - que assombra o país e o mundo?
Como é que este pais suporta o pior presidente e o governo mais bizzarro (tirando, claro, os anos da ditadura, e ainda assim só por causa da violência e da repressão ) de 130 anos da República?
Como é que vão demolindo tudo,dia sim e o outro também, e ninguém move uma palha para impedir?
Olha só, Lula, olha só : achei que estava sereno e que escreveria sem indignação. É não consegui.
Melhor parar por aqui, mas não sem antes reforçar minha amizade e meu carinho por você,pela sua gente.
Pensei em sair do Brasil por um tempo, Lula.
A razão? Conto : em 1977 conheci, no exílio em Madri, um grande escritor argentino chamado Hector Tizon. Ficamos amigos fraternos.
Certo dia de extrema melancolia, perguntei a ele por que havia saído da Argentina. Não estava em nenhuma organização de esquerda, não tinha vínculos com nenhum movimento, não tinha sido ameaçado.
E ele me respondeu: " Sai por asco". Asco pelo que faziam no país dele, Lula. E por essa razão - asco, nojo - pensei em sair do Brasil por um tempo.
Mas não vou. De novo , não.
Vou ficar e resistir com a única arma que tenho, a palavra.
E assim espero que a justiça seja feita e você volte para casa, e a gente possa enfim se encontrar de novo e pôr a conversa em dia.
Há muito o que conversar, Lula, muito. E ando precisando.
Deixo aqui, como sempre, meu melhor abraço.
Eric Nepomuceno
Pensem nisso enquanto eu vos digo até amanhã.
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